quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Paisagens do Medo na Pré-história



Um artigo recente no Journal of Royal Society bem a debruçar-se sob o esquivo problema da paleo-demografia e os padrões que a determinariam, focando-se num aspeto que raramente tem sido considerado ao respeito como condicionante para as sociedades da pré-historia: A guerra. 

Os autores observam que esta elisão da guerra como fator que influi nas variações da demografia tem se baseado numa aproximação simplista a questão considerando unicamente os efeitos diretos do conflito. Esta aproximação parte de que a tanto a pesquisa etnográfica, arqueológica, como a analogia com períodos históricos, com um registo mais amplo de processos demográficos como a Idade Moderna, amostram uma incidência muito limitada da mortalidade bélica direta sob o conjunto da população. 


Apenas uma pequena parte de combatente e mais limitada de vítimas colaterais são resultado, e estas perdas populacionais têm escassa pervivència, pois ao igual que sucede após outros fenómenos catastróficos de maior incidência (epidemias, crises de subsistência) a população recupera rapidamente os seus níveis prévios de crescimento.

O ênfase nas vítimas diretas da contenda teria opacado outros efeitos indiretos sobre as populações, como os derivados do deslocamento da gente que foge de lugares afetados pelos combates. A fugida das zonas exposta leva aparelhado o seu despovoamento, mas também ao invés contribui a saturação demográfica sob as zonas de refúgio recetoras dos refugiados. Em sociedades pouco complexas e de baixo nível tecnológico, esse súbito aumento demográfico pode afetar a capacidade de sustentação agrícola das zonas refugio.

Os autores observam uma correlação, em casos históricos e etnográficos, entre deslocamentos por guerras e o aumento da mortalidade e degradação das condições de vida das populações deslocadas. Isto não afeta apenas a primeira geração que se deslocou senão que ´pode ser perdurável no tempo afetando a seus descendentes. 


Igualmente se a guerra é persistente numa área determinada isto da lugar a paisagens concreta, caraterizados pelos assentamentos em zonas pouco acessíveis e singelos de defender (como os povoados fortificados no topo de colinas por exemplo) no entanto aquelas zonas mais acessíveis e expostas aos ataques ficam permanentemente despovoadas, constituindo um "non-mans-land"





Este padrão dual é o que se tem denominado como "Paisagens do Medo", e pode ser correlacionado com padrões de assentamento localizáveis no registo arqueológico, tanto em época pré- como proto-histórica; sendo que os autores têm localizado este fenómeno em assentamentos do Holoceno-Meio, correspondendo com a chamada crise do Neolítico, durante a qual parece dar-se um aumento da violência em zonas da Centro-Europa, tal vez relacionado com algum evento climático ou com um colapso do sistema produtivo.  Os autores observam que este tipo de fenómeno de configuração de paisagens duais pode chegar a afetar a áreas muito amplas, de entorno a uns 500 km. 


Igualmente, os autores consideram no seu estudo outros efeitos além dos demográficos, sob o sistema de valores e a ideologia, da guerra continuada. Os povos expostos à ameaça de ataques desenrolam atitudes violentas, e uma inclinação a guerra, que pode favorecer uma deriva a valores fortemente patriarcais (mais não sempre, veja-se por contra os casos matrilocalidade e matrilinearidade entre povos "guerreiros" estudados por Divale) vinculados a figura do guerreiro varão. 


Isto se tem argumentado já para alguns povos ameríndios como os jibaros ou as yanomos, descritos como inatamente belicosos por autores como Chagnon, mas dos que a sua predisposição a guerra se tem explicado ultimamente não como um elemento autogéneo senão uma reação cultural a pressão constante que supuseram os ataques dos colonos brasileiros. 


Esse ethos guerreiro pode igualmente favorecer a escalada bélica, ou mesmo influir na hierarquização política e o expansionismo militar, convertendo-se assim o grupo agredido em agressor e o invadido em invasor. Neste sentido os autores recordam as teorias que enfatizam o papel da guerra na transição cara o Estado na linha da célebre "Teoria da Circunscrição" de Robert Carneiro. 


Outro possível efeito cultural que os autores destacam é a influência da instabilidade bélica na mudança da  cultura material. O deslocamento de grupos de população pode levar estilos e tipologias materiais a área distintas da sua origem, mas igualmente os períodos de crise e mobilidade extrema podem favorecer dentro do próprio grupo um câmbio de costumes, padrões e estilos, no entanto, os períodos de estabilidade favoreceriam um maior continuidade cultural em geral.
    

Artigo

Kondor, D., Bennett, J.S., Gronenborn, D. & Turchin, P. (2024): "Landscape of fear: indirect effects of conflict can account for large-scale population declines in non-state societies" Journal of Royal Society Nº   21/ 217  pp.   DOI: 10.1098/rsif.2024.0210

Bibliografia complementar

Divale, W. (1974): "Migration, External Warfare, and Matrilocal Residence" Cross-Cultural Research Nº 9/2 pp. 75-133  DOI: 10.1177/106939717400900201

Kondor, D., Bennett, J.S., Gronenborn, D. et al. (2023): "Explaining population booms and busts in Mid-Holocene Europe". Science Reports Nº 13, 9310   DOI: 10.1038/s41598-023-35920-z

Turchin P, Korotayev AV (20060: "Population dynamics and internal warfare: a reconsideration" Social Evolution History Nº 5 pp. 112–147 PDF


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