sábado, 9 de dezembro de 2023

Um Kelpie Iraniano ?


O Cavalo que matou a Yazdagerd, o Pecador

O historiador e poeta Abu l-Qasem-e Firdausi no seu Shadnamed ("Livro dos Reis") conta o seguinte relato sobre a forma em como morrera o soberano sasanida Yazdagerd I, filho de Sapor III, prototipo do monarca impio e injusto, pelo qual foi conhecido tradicionalmente no mundo iraniano pelo sobrenome de  Yazdager, O Pecador:  
   
"Quando um rei governa com injustiça, todos os males retornarão para ele." Assim, Yazdagerd "o Pecador" sofria de forte sangramento nasal periódico e foi instruído pelo grã-sacerdote (mābad) a buscar remédio orando a Deus pelo perdão na fonte So. O rei fez isso e lavou o rosto na água daquela fonte e ficou curado. O orgulho tomou conta dele, porém, e ele se vangloriou de que foi sua própria sorte -e não a intervenção divina- que lhe trouxe socorro. Então, um garanhão de extraordinária beleza saiu do mar, ele resistiu vigorosamente ao manejo de qualquer cavalariço que foi enviado a capturá-lo. O próprio Yazdagerd saiu e domomou o cavalo e consegui-no finalmente o selar,-mas quando ele estava prestes a amarrar a cauda, o cavalo deu-lhe um coice tão forte que ele morreu instantaneamente, e então o cavalo "desapareceu naquela água azul. Ninguém no mundo viu tal maravilha"

Outros autores de época recolhem este epissodio igualmente na sua História incluindo o detalhe de que o cavalo seria um anjo enviado por deus baixo esta forma animal, embora na tradição persa atopamos exemplos da natureça não apenas anjelica senão em ocasiões demoniaca do cavalo. 


A morte de Yazdager Ilustração dum manuscrito do Sadhnameh, ca. 1300–1030 D.C, Metropolitan Museum

O próprio Ahrimã, o espírito do mal da teologia zoroastriana, aparece as vezes baixo a forma de um cavalo nos textos avésticos, nos que aparecem outros cavalos vinculados as águas como antagonistas de heróis ou divindades. 

O cavalo como demo aquático no mundo indo-iraniano 

Um mito avéstico amostra assim a  Apaoša, um demo com forma de cavalo preto, que domina o lago -ou mar- mitico Vourukaša, retendo as águas do mundo que de ele procedem. Para acavar coa seca o deus Tištrya enfrontou-se ao cavalo demoníaco adoptando ele mesmo a forma de um garanhão branco.  Ambos lutam assim baixo estas formas equideas nas próprias águas durante 3 dias. O próprio lago Vourukaša se presenta nalgumas verssões do mito baixo a forma de uma égua pela qual os dois cavalos de cores opostas lutam. 

Matsya luta contra o demo Hayagriva. Kangra, Índia, circa 1800

Na Índia temos outro demo, Hayagriva, literalmente "Cabeça de Cavalo", que rouba da boca do deus Brahma os Vedas, impedindo assim a realização dos rituais, e se agocha imediatamente em um concha dentro do mar. Por este motivo segundo o Bhagavata Purana o deus Vishnu se encarnara no seu primeiro avatar, Matsya, um enorme peixe, que combate com Hayagriva no Oceano e resgata os textos sagrados do  estômago do asura. Em outra variante de este mito não é em um peixe no que se reencarna o deus senão em ser hibrido com corpo de homem e cabeça de cavalo, também chamado por isso Hayagriva,  apresentam assim um paralelo quase exato como o mito avéstico da luta entre Apaoša e Tištrya.

Hayagriva devolvendo os vedas a Brahma

Um detalhe curioso é que Tištrya antes de adotar a forma com a que lutara com o demo tem que tomar outras duas formas sucessivas, primeiro a de um moço de 15 anos, depois a de um touro com cornos de ouro, para finalmente adotar a sua forma equina definitiva. Estas 3 encarnações sucessivas não tem um explicação muito clara na propria narração, mas poderiam recordar a alguns contos nos que dois personagens antagónicos se enfrentam num combate adotando várias formas sucessivas, se bem esta serie de transformações esta ausente da figura de Apaoša

"Combate de Touros" do pintor ingles George Stubb, 1786. 
Yale Center for British Art

Um curioso paralelo, se isto fora assim, podemo-lo topar no célebre combate de touros do irlandes Táin Bó Cúailgne no que se nos presenta o combate dos dois touros de cores contrapostas (branco e ruivo) como a fase final de um longo combate entre dois seres do além que adotaram distintas formas sucessivamente até chegar a dos dois touros que sucumbem um a mão do outro na batalha final

uma comparação estrutural hipotética entre os três mitos citados, elaboração própria do autor       

Alguns paralelos célticos e germánicos

Deixando estes mitos sob combates teriomorfos e voltando a estranha morte de Yazdagerd, o fato de ser causada esta por um cavalo aquático  evoca na nossa mente outra comparação mais direta com o mundo céltico, pois a função psicoponpa de este animal esta longamente estendida  dando lugar na mitologia e folkorre do Ocidente Europeu, no que há multiplas tradições que falam dos cavalos como avisso de morte ou de equidos monstrosos que habitam nas águas (do qual já temos falado em este blog aqui) e levam a perdição a seus ginetes.

cavalo spicopompo levando seu ginete por um meio aquatico, diadema-cinto de Mones (Pilonha, Asturias), Idade do Ferro

No Escócia Irlanda e Manx este cavalo aquático recebe o nome de Each Uisge "cavalo da água" ou Kelpie. O Kelpie vive em rios ou lagos, mais raramente no mar, e aparece-se invitando a gente a monta-lo, frequentemente o Kelpie receve a varios pasageiros que se vão acomodando a medida que o animal estira o lombo. 

"O Nix como cavalo" do artista Theodor Kittelsen, 1909

Quando os desgraçados vão-se conta da natureza do animal já não podem baixar, pois ficam colados a ele sem remissão e vem como o cavalo os arrasta consigo as aguas para devorá-los. Disse que o Kelpie não gosta do fígado das suas vitimas pelo que ao dia seguinte este aparece aboiando nas aguas da poça ou rio onde habita o monstro.

Campbell na sua obra Superstições das Higlands recolhe o seguinte relato no que se descreve como nove meninos foram arrastrado ao fundo dum lago na garupa do Kelpie

“Várias crianças foram num domingo divertir-se arredor do 'Lago do Desastre (Loch na Dunach) neste distrito. Eles chegaram e toparam com um cavalo, e como jogo montaram nele. Suas costas foram ficando mais compridas até que todos estivessem montados, exceto um, que levaba uma Bíblia no peto. Ele tocou o cavalo com o dedo e teve que cortá-lo para se salvar. O cavalo correu para o lago e as 9 crianças, nunca mais foram vistas. O fígado dum deles apareceu na beira do lago ao dia seguinte”
O mundo germânico conhece igualmente cavalos aquáticos que provocam a morte dos seus ginetes,  arrastando as vitimas as águas, ou, ao igual que no mundo céltico, anunciam a morte a quem os contempla. É o caso do Fossegrim e o Nykur ou Nix, espírito aquático ao qual também se atribuem outras formas, e que sob sua fasquia equidea arrasta as aguas as suas vítimas. Uma lenda islandesa recolhida por Stefanson amostra um destes casos de abdução aquática que explica ademais um peculiar toponimo:

“Um animal curioso é o nykur ou cavalo da água. Quando você o vê, ele parece um cavalo cinzento comum, exceto que seus cascos giram para o lado errado e que há sempre um vento soprando atrás de sua pata dianteira esquerda. ... No leste da Islândia existe uma ampla gandara conhecido como  Gandara do Lago da Manteiga pela seguinte circunstância: Uma criada foi enviada de uma fazenda para atravessar a gandara até a pequena vila comercial de Vopnafjbrthur para vender um pouco de manteiga. Ao atravessar a gandara, ela ficou com os pés doloridos e cansada pelo se sentiu feliz ao encontrar perto da estrada um cavalo cinzento manso que ela montou. Tudo correu bem por algum tempo, mas perto da lugar havia um pequeno lago - o atual Lago da Manteiga. Quand o o cavalo viu a água, lançou-se direto para dentro dela e carregou a menina a morte com ele. Foi assim que a gandara e o lago receberam seus nomes.
Os nykur eram conhecidos há muito tempo, por habitarem certas poças profundas do rio. Um dia, as pessoas do bairro acenderam muitas fogueiras e atiraram brasas no rio durante um dia todo. Isso afastou efetivamente o nykur, como pode ser visto pelo fato de que agora não há já nenhum no rio”  
Além do ambito celto-germánico é conhecida sobradamente a relação entre cavalo, agua e morte entre outros povos indoeuropeus desde Grecia antiga até a India, mas além podemos do grupo indo-europeu topar evidências de estes topoi também em outros ambitos culturais. 

De volta a Oriente: Conexões euro-asiáticas   

Ishida Eiichiro tem estudado a extensão praticamente euro-asiática da associação entre cavalo e água. Na Arménia o herói Burzi se enfronta a um cavalo de fogo saído do mar que matara todos os cavalos do rei, igual tradições sob cavalos saidos das mar topam-se no Kurdistâo ou em Geórgia, onde Rashi o cavalo divino que serve de montura a São Jorge é capturado pelo santo embaixo das águas mar. 


Distribuição do conto segundo Berezkin: 1) guardião triunfa na sua labor, 2) guardião fracasa em proteger ao primeiro homem

A associação entre o cavalo e morte também esta pressente nestas tradições euroasiáticas. Berezkin tem estudado longamente um conto no que se atribui à ação dum cavalo a causa da mortalidade dos humanos ou ainda do facto de que cavalo tenha que ser servidor do homem. Este conto-mito apresenta frequentemente a este cavalo primigenio como antagonista do cão encarregado de guardar ao primeiro homem:

"então criou um cavalo alado, depois esculpiu uma figura humana e deixou-a secar; O cavalo veio e pisoteou-a, temendo que o homem o atasse; então S. fez um cachorro e uma nova figura de homem; Quando à noite o cavalo pisoteou novamente o homem, o cachorro o afugentou com ladridos; a figura secou e o espirito a reviveu, mas as juntas não dobraram; pelo que lhe tirou a vida e fez um novo homem com articulações flexíveis"

Este conto-mito extende-se em boa parte da Eurásia, em lugares tão afastados como Europa, a Índia,  Siberia ou Indonesia, e tal vez, forme parte de um mito mais extendido -de origem paleolítica?- que se prolonga até o continente americano no que se explica a origem da morte (se bem Berezkin têm duvidas ao respeito). A participação do cavalo nas verssões euroasiaticas seria uma innovação tipicamente indo-europeia; sendo logo que esta verssão da lenda etiologica extenderia-se ao outras etnias centro-asiaticas que formaram parte da koine cultural das estepes. 

praca calada de bronze atribuida aos xiongnu, circa 200-100 A.C, 
Museu de Stockolmo

Em este sentido, resulta sugerente que esta opossição primordial entre  cavalo-cão seja o que esta detras de certas repressentações artisticas centro-asiáticas, como algumas plaquinhas decoradas dos xiongnu, na que amostra um cavalo e um canido lutando e mordendo-se ferozmente um ao outro. A mesma extenssão parece dar-se igualmente no topos do cavalo da água que vemos em Asia igualmente fora da área indo-europeia, amalgamada com as tradições autotonas sobre os seres ou divinidades das águas. 

manuscrito japones de finais do periodo Tokugawa, meados do século XIX, mostrando algumas das distintas formas do Kappa

Assim na China topamos o cavalo aquático sincretizado com a figura do dragão, senhor das águas, dando lugar a figura do cavalo-dragão na que este ser se aparece adoptando a forma de equido, ou no Japão onde o Kappa o perigoso espirito das águas adopta entre outras muitas formas a dum cavalo, ou amostra um curiossa tendência a levar com ele aos equideos as águas que habita


Alguns autores como White tem tentado interpretar a associação entre cavalo e águas, como resultado da percepção do homem prehistórico que observaria a frequente pressença de manadas de cavalos diante dos cursos ou masas de água para abrevar, se bem esta hipotese tem em contra o facto de que isto mesmo poderia dizer-se igualmente para qualquer outro animal salvagem, pelo que esta solução ab hoc, não acava de resultar de tudo convincente. 

o chamado "cavalo voador" estatueta do periodo Han representando a um dos "cavalos celestiais de Ocidente", dinastia Han, circa 25-200 D.C, Museu de Gansu, China

Mais fativel, ao nosso parecer, resultaria, seguindo analogicamente as conclussões de Berezkin, pensar que do mesmo jeito sucedeu com o topos mitico do cavalo aquático possivelmente de origem indo-euorpeu, mas que se teria difundido fora deste ambito cultural originario a lugares tão afastados como pode ser China ou Japão, como um simple motivo "migratorio". Não seria extranho tampouco pensar que a difussão do motivo se tivera dado em paralelo a propria difussão do cavalo e da propria técnica da equitação. Assim não apenas elementos tecnologicos senão também costumes e crenças associadas asociados a eles teriam chegado ao Oriente ao passo dos que, no Imperio chines eram chamados  "Cavalos Celestiais de Occidente".







Bibliografia 

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Berezkin, Y & E.N. Duvakin, E.N.: Тематическая классификация и распределение фольклорно-мифологических мотивов по ареалам / World mythology and folklore: thematic classification and areal distribution of motifs.  https://ruthenia.ru/folklore/berezkin/

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Darmesteter, G. (1892): Le Zend-Avesta. Annales du Museé Guimet. Paris. Vol. 2.

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Kellens, J. (2001): "Les saisons des rivières" in:  Stausberg, M.: Kontinuitäten und Brüche in der Religionsgeschichte. Festschrift für Anders Hultgård zu seinem 65. Geburtstag. Walter de Gruyter. Berlin. pp. 471-480

McKay, J.G. (1925): "Gaelic Folktale" Folklore Nº 36/2 pp. 151-173

Panaino, A. (2005): "Tištrya" Enclyclopaedia Iranica https://www.iranicaonline.org/articles/tistrya-2

Piras, A. (2011): "Serse e flagellazione dell´Ellesponto. Ideologia avestica e conquista territoriale achemenide" in: Panaino, A & Piras, A. (eds.): Sindo-Iranica et Orientalia. Collana diretta da Antonio Panaino e Velizar Sadovski. Studi Iranici Ravennati Vol. I. Milão. pp. 111-138

Shahbazi, A.S. (2003): "The Horse that Killed Yazdagerd "the Sinner" in:  Adhami, S.: Paitimana: Essays in Iranian, Indo-European, and Indian Studies in Honor of Hanns-Peter Schmidt. Mazda Publishers. Costa Mesa. pp. 355-362

Stefánsson, V. (1906): “Icelandic Beast and Bird Lore” Journal of American Folklore Nº 19/75 pp. 300-308

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White, D. G. (2021): Daemons Are Forever: Contacts and Exchanges in the Eurasian Pandemonium. University of Chicago Press. Chicago


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