terça-feira, 24 de dezembro de 2024

Guerreiras, Deusas e Mulheres Perigossas


Faz uns dias o nosso colega o professor Pedro R. Moya-Maleno fazia uns interessantes comentários, dentro da campanha de crowfunding para seu projeto etnográfico de lutas tradicionais na Península Ibérica (embaixo), assinalando que algumas figuras míticas do folklore hispânico (A Serrana, A Galharda) podiam ter sua base no papel mais activo que as mulheres puderam jogar na Antiguidade entre os povos pré-romanos da Europa proto-histórica. 

Mulheres fortes e guerreiras celebres da Idade do Ferro como Cartimandua e Boudica, capazes de liderar aos seus povos e ir à batalha guiando em pessõa a seus soldados, e que chamavam a atenção dos autores clássicos, acostumados ao rol passivo da mulher no mundo greco-romano.  E ao respeito  considera a possibilidade de que em épocas proto-história as mulheres participassem, ao igual que os homens (e mesmo contra eles), em actividade atléticas e especialmente de luta. 

Parte para isto de uma imagem que decora uma bainha de espada lateniense do século I. A.C, procedente da zona do Alto Dniesper (atual Ucrânia), peça que já estudara na sua tese doutoral, interpretando-a como uma cena de luta corpo o corpo entre um homem e uma mulher (denotada pelo cabelo longo, recolhido numa trança) (Moya Maleno, 2020). 

duas cenas de luta na Idade do Ferro: lutadores do conjunto de Cerrillo Blanco (Porcuna, Jaen), bainha de Gryniv (Ucrània), imagens P.R Moya-Maleno

A peça foi topada na tumba Nº 3 da necrópole de Gryniv adscrita a cultura celta de Przeworsk, que se estendeu por Polonia e parte da zona Ucrânia, como a zona de Galliš (Kazakevich, 2010). A peça apresenta uma rica iconografia repartida ao longo de 5 secções:

"um animal predador a capturar uma ave de pescoço comprido um grifo com cabeça de águia um casal abraçado: animal quadrúpede indefinido rodeado por duas plantas ou folhas  um cavaleiro com uma lança e um escudo redondo adjacente a uma folha semelhante ou a uma planta representada de cabeça para baixo. As estatuetas masculinas e femininas estão colocadas no centro da composição e ocupam um pouco mais de espaço que as restantes." (Kazakevich, 2010)

Kazakevich interpreta a cena central da peça como um episodio de matrimónio ou galanteio, seguindo em isto a Kozak que ve na parelha central um "casamento sagrado", que simbolizaria "algum tipo de estructura cosmologica", mas chama igualmente atenção sobre o inusual da vestimenta da mulher na cena: 
 

"É interessante notar que tanto as figuras masculinas como as femininas da bainha de Gryniv estão vestidas com calças curtas e a única característica de género da figura feminina é uma longa trança colocada no seu ombro. É extremamente raro que a arte antiga represente uma mulher em calças, embora por vezes guerreiras como as Amazonas fossem pintadas desta forma. Pelo contrário, no caldeirão Gundestrup as personagens femininas usam maioritariamente vestidos compridos; no entanto, na placa redonda inferior  uma guerreira que luta contra um touro tem uma trança e calças curtas semelhantes às de Gryniv" (Kazakevich, 2010)

Esta descrição de uma mulher em calças curtas aferrada a um homem vestido de igual jeito e coerênte novamente com a hipotese de uma cena de luta tradicional, corpo a corto, como as que estão testemunhadas iconograficamente para idade do ferro ou ainda se podem contemplar (mais ou menos recuperados e reclicrados em deporte rural) nons combates tradicionais de muitas zonas da Europa. 

Mas tampouco hã que descartar totalmente, ao nosso ver, a hipótese matrimonial, antes bem consideramos que existe uma mais que demorada evidencia, tanto mitológica como lendaria, que vincula a luta física entre sexos com o emparelhamento e o mesmo matrimonio. 
   

As carreiras de Atalanta e de Macha

A favor de essa interpretação cripto-erótica da luta, existe todo um ciclo de lendas, no que uma mulher poderosa definida como guerreira, caçadora (e frequentemente virgem) impõe como condição ao pretendente que queira casar com ela, vencen-la muma proba: ou bem de luta, ou mesmo atlética. Este é, por exemplo, o caso da Atalanta grega, a boncela heroica por antonomasia 


"jovem espartana correndo", 520BC-500 A.C, British Museum. A posição girada mirando cara atrás não faria descartável igualmente uma identificação com uma Atalanta distraída pela maça atirada por Hipomédes

Atalanta e descrita como uma doncela que supera a todos os homens nas atividades que se lhe atribuem como próprias, a guerra, a luta, a caça e o desporto. Acerta no corpo do javali de Calidão com a sua lança antes que nenhum dos heróis gregos pressentes, provocando o descontento de estes. Ao mesmo tempo, mostra uma hostilidade ao matrimónio; consagrada como virgem a deusa caçadora Artemisa, que patrocina as jovens adolescentes em trânsito ao matrimónio, ela rejeita atar-se a qualquer home, tentando ficar permanentemente em esse estadio liminar que a deusa patrocina. E por isto que põe uma condição -impossível segundo crê-: ela apenas casara com aquele que a derrote numa carreira.


Um e outro, os pretendentes são derrotados e mortos por Atalanta, pois esta impusera igualmente como cláusula. que mataria ao perdedor. Finalmente será Hipomedes quem. com a ajuda da deusa do amor (Afrodita). consiga derrotar a veloz e fera Atalanta através uma estratagema. Afrodita da-lhe 3 maças de ouro, procedentes do Jardim das Espérides, que o rapaz vai atirando cada vez que Atalanta se-lhe aproxima correndo, com o qual consegue retardan a sua marcha (1) mestres ela apanhava os frutos do chão

"Hipómenes y Atalanta" (circa 1618-1619) deGuido Reni, 
Museu do Prado de Madrid

Esta derrota marca, por tanto, a fim da vida selvagem e independente de Atalanta e a entrada no gineceu. Mas não o seu início no sexo, pois algumas versões do mito refletem o seu namoro previo com o herói Meleagro, que  daquela estava igualmenteem num período de transição cara a idade adulta e prendizagem das artes da guerra (/caça), e talvez sexuais, na floresta. 

De este tema da carreira de uma mulher extraordinária, se nos deslocamos do mundo grego podiamo-lo topar mesmo em uma variante estruturalmente invertida, na propria carreira  que por imposição do seu marido teve que realizar Macha. E na que ela correndo a pé vencera aos cavalos (e, por tanto, aos seus ginetes) da Irlanda. Mas aqui a Victoria da mulher ao invés de no caso de derrota de Atalanta, não leva ao matrimónio, senão que, pelo contrário, marca a rutura do. até aquela feliz e próspero. matrimónio de Macha com o seu marido mortal (vid. not. 6). 


A lógica guerreira iniciática que apreciamos no mito de Atalanta e Meleagro também se vê invertida, pois a "victoria" -e morte- de Macha tem como consequência, uma maldição que leva a perda temporal e cíclica da condição guerreirae  masculinidade, para os homens do Ulster, que devem femininos ao sofrer horríveis dores de parto uma vez ao mês, ficando assim totalmente inabilitados para a briga. 

A Mulher combatente o marido subtituto

Seguindo no norte vamos demorar-nos ainda num caso de competição de tipo atlético e guerreiro como forma de aceso ao matrimónio. No mundo germânico o temos no ciclo dos Nibelungos com a figura da terrível Brunilda donzela guerreira walkiria, que reina na Islândia. Ilha a onde se achegam o rei burgundio Gùnther acompanhado do seu cunhado Sigfrido, o herói do poema. 



cenas de Das Nibelungen de Fritz Lang (1924)

Ao chegar são recebidos por Brunilda que lhes faz saber as provas que deve superar o guerreiro que quera casar com ela: lançar uma pedra mais longe e saltar além de ela, e logo. vencê-la num duelo singular,  lançando por turnos cada um a lança contra o outro:   

"Sendo tu o senhor, e tu o vassalo, sabei que se ele se atreve a disputar as probas a que eu lhe reto e sai  de elas vencedor, serei a sua mulher, mas se eu alcanço a vitória ira-vos a vida em isso. ...

A pedra teras que atirar e logo saltar detrás de ela. Depois mediras-te consigo atirando a lança. Não vos precipiteis, podeis bem perder o honor e a vida. Meditai bem. Assim falou a formosa mulher." (Nibel. VII. 423-425)

Graças a ajuda de um invissivel Signfido Günther consegue superar fraudulentemante estas probas, mas Brunilda nào aceita dozilmente a condição matrimonial, e a pesar de consentir as nupcias, durante a Noite de Bodas, luta e rejeita a seu marido, que impotente é inmobiliçado e amordaçado pela poderossa guerreira. Será de novo Sigfrido quem adotando a forma do seu cunhado, abra de novo o caminho a aquel, vençendo na luta nupcial a fera Brunilda, domando assim qualquer ressistencia posterior aos desejos de Günther. 

Brunilda inmoviliça a seu marido Günther com uma potente chave de solo digna do melhor yiuyitsu brasileiro durante a noite de bodas, Das Nibelungen de Fritz Lang

Dai-se assim um acumulo de enganos, nos que o vencedor não é o que acessa ao matrimónio com a mulher desafiadora, senão que cede o seu lugar no leito. Este segredo cumprira um papel fundamental logo na tragedia., ao descobrir, durante uma discussão, a mulher de Sigfrido (Krimilda) à Brunilda a verdadeira identidade do seu vencedor, o qual leva a vingança posterior de Brunilda, que instiga a Günther a matar a traição ao herói durante uma caçada. 

A morte de Sigfrido, fotograma coloreaido de  Das Nibelungen

Outras mulheres guerreiras: Hipólita

Outro caso sui generis, no que este padrão não resulta evidente, o temos no caso de Hipólita, a rainha das amazonas, que aparece vinculada a dois heróis masculinos: Teseu e Herakles. Do primeiro se conta como consegue sequestrar a rainha amazónica e terminam convertendo-se em amantes. União da que nascera o herói Hipólito. 


Em quanto a Herakles o seu afrontamento vem motivado pelos 12 Trabalhos que tem que superar o herói, e entre os que se inclui apoderar-se do cinto magico que porta a rainha Hipólita. Este é um regalo do deus da guerra Ares, e quem o leva posto adquire uma força extraordinária. 


Herakles matando a Hipolita, anfora ática de figuras pretas, 
530–520 A.C Museo del Louvre

Há diversas versões contraditórias de como Herakles consegue o cinto de Hipólita. Desde um combate no que a mata soltando o cinto do corpo morto da amazona (Apol. II. 5.9) a outro no que esta lhe-lo entrega como resgate da sua irmã Melánipa que o herói tirintida sequestrara (DS IV.16.4), mas também existe uma versão citada também por Apolodoro na que Hipotita namorada de Herakles lhe oferece voluntariamente seu cinto em prenda de amor (2). 
    

Cú Chulainn no Castelo da Sombra

Um caso paradigmatico da relaçao entre o heroe, o combate contra uma mulher guerreira e um posterior matrimonio ou relacionamente sexual informal, o temos na Irlanda dentro do celebre Ciclo do Ulster, sinaladamente nos poemas que descrevem a juventude do Cú Chulainn antes de converter-se no grande campião do Ulster, quando viaja à Escocia para ser entrenado por Scáthach, uma mulher mestra nas artes da guerra. 

ruinas do castelo de Dunscaith na Ilha de Sky (Escócia)

Cú Chulainn se drige a morada da amazona escocesa, nas Ilhas Hebridas e alcança sua fortaleça, Dunscaith (o "Castelo da Sombra"), que resceve seu nome do proprio da sua senhora, pois Scáthach não significa mais que "Sombra", nomem que já denota uma caracter não puramente humano da guerreira, e que o aproxima a uma mulher do além (bandsidhe) mas do que a uma mortal. O proprio caminho cara a morada de Scáthach esta marcado como uma entrada num mundo sobrenatural, através da passagem perigossa por uma misteriossa planicie, da qual uma das metades congela a quem a pisa e a outra o cobre com a sua erva


Uma vez no Castelo da Sombra, é recevido pela filha de Scáthach  Uathach que namora do heroi ulato,  e lhe faz chegar a sua mãe a nova da da chegada de Cú Chulainn Scáthach, ainda percevendo o interesse pelo forasteiro da sua filha, oferece-lhe a este que partilhe a sua cama. Ao qual segue um extranho episodio em que Uathch serve a comida disfarzada de servo. e é lesionada num dedo por Cu Chulain, o qual faz que os homens do castelo o confrontem e sejam vencidos por ele. Pouco depois diz-se que Cú Chulainn e Uathach são parelha. 

"Uathach, a filha de Scathach, foi ao seu encontro. Ela olhou para ele. Ela não falou com ele, tanto a sua forma movia o seu desejo. No entanto, ela foi e elogiou-o à mãe.

«O homem agradou-te», disse a mãe. «Ele virá para a minha cama e eu dormirei com ele esta noite. »

«Isso não será chato para mim. »

A donzela serviu-lhe água e comida. Ela recebeu-o sob o disfarce de um servo. Ele magoou-a e partiu-lhe o dedo. A donzela gritou. Este percorreu todo o exército do dun, de tal modo que um campeão se levantou contra ele, viz. Cochor Crufe. Ele e Cuchulind lutaram e o campeão caiu.

Scathach ficou triste com isso, de tal modo que ele lhe disse que tomaria (sobre si) os serviços do homem que tinha caído. ... Tudo foi feito assim. Ora, esta era a época em que ele estava com Scathach e era companheiro de Uathach, sua filha" (Tochmarc Emire, 65-85)

Temos aqui um estranho ato de violencia -uma especie de speudo-combate?- que remata em lecção para mulher travestida de servo (masculino) (3), e a morte dum guerreiro, seguida de Cú Chulainn convertido em vasalho en sustituição do homem que matara de Scáthach, e, finalmente o namoro do heroi com Uathach, mas passando igualmente Cú Chulainn a primeira noite  pelo leito de Scáthach. 


Aife segundo o pintor John Duncan (1866–1945)

Uma ambiguidade que desaparece quando no seguinte episodio o ulate se encontra com Aife. Aife é outra doncela guerreira como Scáthach.  da qual é a irmã gemelga (uma especie de dobrete?) e adversaria. Cú Chulainn como guerreiro vassalo de Scáthasch enfronta-a na batalha e após vence-la em um epissodio que remata em uma especie de luta corpo a corpo, lhe faz prometer cesar as hostilidades e converter-se em sua amante. 

"Então, Cú Chulainn foi ao encontro de Aiffe e perguntou-lhe (a Scathch) o que mais amava. Scathach disse: «Isto é o que Aiffe mais ama, o seu cocheiro e os seus dois cavalos de carruagem.» Então lutaram no caminho, Cú Chulainn e Aiffe. Depois, ela partiu a arma de Cuchulind de modo a que a sua espada não ultrapassasse o punho. Então Cuchulind disse: «Ai de mim!» disse ele, «O cocheiro de Aiffe e os seus dois cavalos de carro caíram no vale e morreram todos. » Com isto, Aiffe olhou para cima. Com isto Cú Chulainn aproximou-se dela, agarrou-a por baixo do peito, atirou-a para cima (do ombro) como um fardo e foi ter com o seu próprio anfitrião. Ele. atirá-la para o chão.
« Vida por vida! » disse ela.

« Os meus três desejos para mim! » disse ele.

«Tu tê-los-ás.»

«Estes são os meus três desejos: dar reféns a Scathach sem nunca mais se lhe opor, estar comigo esta noite antes do seu próprio Dun e dar-me à luz um filho. »

É concedido assim e tudo foi feito. Depois disse que estava grávida" (Tochmarc Emire, 65-8)

O filho saido desta união sera Conla, quem anos depois ira a Irlanda a busca de seu progenitor e será morto tragicamente por ele em um combate, em um caso do tipico topos epico indo-europeu do "Combate do Pai e o Filho" (Vater und sohn kampf theme). 


Temos no relato da juventude do heroi pois um periodo iniciatico em que Cú Chulainn se relaciona com uma triada de mulheres (duas irmãs, a outra filha) com as que em dois casos combate, e da outro da que resta (Scathach) recive treinamento em artes marciais (a tecnica do salto do salmão) assim como as armas que logo portara (a lança Gae Bolga). Triabe (4) com a que o heroe inicia-se não apenas na guerra mas também no sexo, antes de voltar a Irlanda e tomar por esposa a Emer. 
   

Do Mito a Arqueologia e ao Folklore

Estas fortes connotações miticas que observamos no ciclo epico sob a juventude do heroe irlandes podem ser especialmente relevante para a interpretação da bainha de espada de Gryniv, pelo seu contexto céltico e porque permitem armonizar a hipotese do combate com a de uma cena vinculada ao cortelho e matrimonio. Ao longo de esta postagem temos observado como em diversos contexto do mundo indo-europeu occidental se repetia um mesmo padrão temático e narrativo (5): 

1) Uma mulher que impõe como condição ao matrimonio ou acceso sexual uma dura proba, que normalemente implica um combate ou competição atlética,

2) a victoria concede os favores da mulher no entanto a derrota leva aparelhada a morte do pretendente.

3) Ocasionalmente de essa união entre heroi e a mulher guerreira ou fera sai um filho

4) Frequèntemente isto se situa no contexto de iniciação do heroi cara a condição de guerreiro e homem adulto.

Na peça de  Gryniv e cena do combate entre o homem e a mulher ocupa um lugar central da composição entre outra imagens. nas que se repressentam animais e feras mitologicas, assim com um guerreiro a cavalo (o proprio guerreiro que luta com a mulher no episodio central?), não seria tão estranho, por tanto. que em esta peça, e neste contexto da Idade do Ferro, tenhamos recolhido um tema mìtico de iniciação guerreiro-sexual, similar ao que no outro extremo do mundo celtico topamos refletivo no ciclo do héroe irlandés.


O tema da proba ao que uma mulher sobrenatural somete a um homem, como condição para aceder ao matrimonio, está, além das fonte, antigas e medievais, também no folklore de tradiçáo oral europeu. Especialmente na Peninsula Ibérica são comuns, tanto na Galiza e Portugal como em Asturia, as lendas em que uma moura ou xana (na terminologia asturiana) aparece-se a um home mortal impondo-lhe uma proba para poder casar com ela, e prometendo-lhe em dote os tesouros que junto a ela se guardam (6). 


Na maioria dos casos a mulher torna em uma gigantesca serpe, ante a qual o pretendente deve mostrar seu valor: beijando-a na boca, deixando que se-lhe enrroque no corpo ou o lamba de acima a embaixo coa sua lingua bifida Se o homem supera este ordálio, a mulher retorna a sua condição de formosa mulher e concede o prometido (matrimonio e riqueça) ao pretendente. 


Mas, com tudo, existem algumas variantes que pressentam uma forma de "desencantamento" da mulher mais violenta ou heroica (em sentido marcial), como fazer-lhe uma ferida ao monstro, ou mesmo mata-lo, resuscitando logo do corpo morto da cobrega a moura de novo no seu feitio de formosa moça. Numa verssão recolhida em Momam (Germade, Lugo, Galiza) isto adquire uns carateres muito explicitos e cruentos:

“Pena do encanto: Disse que unha rapaça aparecia ali polas manhãs dando de comer a umas pitinhas e um rapaz achegóuse-lhe. Ela díxo-lhe que estava encantada e para desencanta-la tinha que ir ali o dia de Sam Joám e colher unha pedrinha e tira-la ó rio.
Ela aparecia em forma de serpe e para desencantala debía-lhe de cortar a cabeça duma soa vez cum sabre que aí aparecia. O rapaz prometeu ajuda-la se despois ela casaba com el. O dia de Sam Joám o rapaz foi à Pena do Encanto. E ó tirar a pedra ó rio, apareceu o sabre. Despois apareceu a serpe. Pero como era enorme, o rapaz tivo medo. A rapaça, moi triste, marchou ó mar convertida em serpe para sempre” (AAVV., 1994)

Da Moura à Galharda

O inusual tema da decapitação com uma espada especial de esta lenda germadina, tem um significativo paralelo exato nos romances de outra figura mitica peninsular: a chamada "Gallarda Matadora de Hombre" ou "Gallarda Matadora de Siete Maridos". Em um romançe sefardi Armistead e Silverman toparam uma variante na que a monstroça mulher homicida lhe faz a seu matador uma estranha petição: que lhe deu um segundo golpe depois de morta. 

Y de enfrente la veigo venir como el grano de agranada:
 Le demandí si era cazada. - Cazada, por los mis pecados.
Siete maridos ha tomado; todos los siete eran matados
y por no hazerme el mi dicho y ni menos el mi comando.
- Y yo te haré el tu dicho y también y el tu comando.
- Tenéme esta linda candela y vos haré la linda sena
y de culebras y alacranes y todo modo de animales.
Y fin que se haze la sena y vos haré la linda cama. -
Y del ombligo para arriva, una linda dama sería.
 Y del ombligo para abaxo, un negro animal sería.
Y yo vezí de la madre, que la mujer se echa delantre.
 Y ya le dio una d'eya y la hizo media por media.
- Y dame una otra d'eya, una ves me parió mi madre
(Armistead & Silverman, 1984)

Estes dois autores se perguntam o porque da estranha petição do segundo golpe de espada, pois o primeiro já partira o corpo da Galharda em dois. Em algumas outras versões o golpe da espada tem como consequência não partir o corpo da Galharda senão decapita-la ("Desenvainó la su espada, / la cabeza le cortaba") ao igual que no caso da moura germadina. Através do estudo dos paralelos folcloricos Armistead e Silverman concluiam que se bem o primeiro golpe da arma matava o segundo -paradoxalmente- dava de novo a vida. Isto concorda plenamente com o caaso da decapição "salvadora" da lenda germadina. 


Há outro elementos confluintes entre as mouras nordestinas e a Galharda, como o carater semi-humano, pois as vezes esta última é descrita com um hibrido: de cintura para acima humano e  "escuro animal" para abaixo, o qual recorda ao corpo semi-ofidico da fada Melusina, ou as metamorfoses de mulher a serpe e serpe a mulher tão tipicas das mouras e xanas do Noroeste Peninsular. Mas a Galharda normalmente adquire caracteres plenamente humanos se bem estranhos e perigossos, como outra figura emparentada com ela no folklore Hispânico: A Serrana de La Vera. 
  

A Serrana e a Galharda

A Galharda como a Serrana aparecsem como mulheres asociais que vivem no monte, em uma solitaria cabana ou numa profunda cova, a qual atraim as suas vitimas: pastores ou moços. com os que saciam seus desejos sexuais e aos que depois matam qual mantis humanas. A lenda da Galharda nos amostra na sua cavana, na qual de uma das traves do teto se vem colgar as 7 caveiras, daqueles que foram seus "maridos" temporarios. A Serrana oferece ao "serranito" igualmente para bever a caveira de uma das sua victimas dizindo-lhe que a proxima cunca há ser feita da sua. 

Em este cenario de panico e horror o moço fuge e denuncia a assesina que e capturada e punida, ou bem no caso do "oitavo" marido da Galharda, ele mesmo a mata antes do amencer, derramando a sangue da homicida como antes fora derramada a das sua vitimas no chão. As verssões que da mitica Serrana ofereceram as obras teatrais do Século de Ouro Espanhol (aqui) incidiram em racionalizar sua figura, convertindo-a em um precedente dos squycho-killers da crónica negra actual. Dão-lhe igualmente além da denominação generica do folclore um nome propio apelidos, familia e linhagem reconhecivel e mesmo explicam as causas biográficas de tal odio aos homens (o ter sido "deshonrada" por seu namorado), tudo muito acorde com a ética e valores gerais sob o sexo e a honra que o teatro da época reflite. 

Boa parte de essas verssões racionalistas e cultas impregnaram, através das representações dramaticas às que assistia o povo, ao proprio foclore (aqui). Mas de vez em quando baixo este transforndo desmitificador e secularizado emerge o fundo o velho fundo sobrenatural do velho ciclo folclorico de estas mulheres "matadoras de homens" A propria forma meio humana no romançe sefardi de Armistead; as verssões que fazem a Serrana não plenamente humana senão um hibrido: filha de um pastor e uma égua. 



Carater semi-equino que nos evoca inmediatamente  forma equina dos "corredores" do folclore portugues, que de forma similar aos lobisomes correm "a  fada" de uma malição mas não em forma de lobos, senão de cavalos, mas igualmente as recorrentes associaçóes ao cavalo das mouras galaico-poruguesa (7). Mas isto também evocam outros carateres equinos mais antigos: a Macha irlandesa ou Epona Gaulesa

No proprio ambito lusitano, no que se situa a Extremadura onde se localizam a maioria das lendas sob a Serrana, temos a pressença de uma divindade pré-romana denominada Ikoina Loinmina (uma "Equina Luminosa"-?-) na celebre inscripção lusitana de Cabeço das Fraguas (Schattner & Santos, 2010). Esta lenda que atribui à Serrana descender de um pastor e uma égua apressenta igualmente um curiosso paralelo com uma tradição apocrifa sob os origens da deusa Epona recolhida pelo Pseudo-Plutarco (8). 

A Galharda e A Serrana são mulheres apenas montesaias, homicidas, sexualmente activas (9), caçadoras e que mesmo chegam a retar aos homens naquelas coisas nas que estem deveram dominar como os combates de luta, mas que não adquirem por isso necessariamente os carateres masculinos nem repulsivos, das bruxas horriveis e gigantas ogressas de boa parte do folkore nórdico.

Não são tampouco velhas de abançada idade, como a Caillheach gaelica nem a Velha moura hora benefactora oura terrivel, ou a Orca Velha antropofaga.  Adquirem pelo contrario a forma das jovens fadas (mouras, , bandshide) de cabelos loiros e ricos vestidos que umem a seu atrativo tentador a potencial perigosidade


A Galharda deve Morrer

Tal vez, esta similitude com a moura ou fada, assim o creemos, seja mais que formal ou epidermica, e detras de derrota e morte da Serrana ou a Galharda houvera um contexto similar as probas de desencantamento das mouras, e após o segundo golpe de espada, emergiriam resuscitadas, e accessiveis já ao casamento, com o homem triunfante nesta autentico ordalio por combate a morte. 

Mas, além do estranho, segundo golpe desnecesario, nada fica, perde-se totalmente qualquer conexão feérica. O segundo golpe, que nunca sera dado, poderia, em este ordem de coisas, apenas resuscitar a uma Galharda na sua forma anterior de depredadora puramente maligna. Por isso o segundo golpe, resto inexplicado no relato do velho topos mitico nuca é executado pelo herói, não o pode ser. 

A Galharda e a Serrana são pois. já na sua concepção, puramente cristiã e humanizada,  "irredimiveis" pelos seus graves crimes e pecados, e não há jã transissão, salvadora à apacivel cara a vida coniugal, possivel.  A velha mulher mitica, incomprendida, só pode -deve- "morrer". 

Bibliografia 

Barringer, J. M. (1996): "Atalanta as Model: The Hunter and the Hunted" Classical Antiquity Nº 15/1 pp. 48-76

Dominguez Moreno, J.M. (1985): "El Mito de la Serrana de la Vera" Revista de Folklore Nº 52, pp. 111-120

Faraone, C.A. (1990): "Aphrodite's ΚΕΣΤΟΣand Apples for Atalanta: Aphrodisiacs in Early Greek Myth and Ritual" Phoenix Nº 44/3, pp. 219-243

Holzer, G. (2020): "Hippomenes und Atalanta beis den sübslaven" Ricerche slavistiche. Nuova ser Nº 3/63 pp. 307-318

Gutiérrez Carbajo, F. (1998): "La pervivencia del mito de La serrana de la Vera"in: María Cruz García de Enterría, M.C & Cordón Mesa,, A. (eds.): Actas del IV Congreso Internacional de la Asociación Internacional Siglo de Oro (AISO), (Alcalá de Henares, 22-27 de julio de 1996). Vol. 1,  Universidad de Alcalá. Alcalá de Henares pp. 771-786

Gutierrez Macias, V. (1988): "La Serrana en el Folkore" Revista de Folkore Nº 29, pp. 39-43

Kazakevich, G. (2010): "The late La Téne decorated scabbard from the Upper Dniester area: A far relative of the Gundestrup Cauldron?"  Fomin, M., Jarniewicz, J. and Stalmaszczyk, P. (eds.):  Dimensions and Categories of Celticity: Studies in Literature and Culture. Proceedings of the Fourth International Colloquium of Societas Celto-Slavica held at the University of Łódź, Poland, 13-15 September 2009. Part 2. Studia Celto-Slavica Nº 5, pp. 171-179

Lienert, E. (2003): "Geschlecht und Gewalt im 'Nibelungenlied' Zeitschrift für deutsches Altertum und deutsche Literatur Nº 132/1, pp. 3-23

Lorenzo Crieda, E. (trad.) (2005): Cantar de los Niberlungos. Catedra. Madrid

Meyer, K. (1890): "Tochmarc Emire/ The Wooding of Emer" Revue Celtique Nº 11 pp. 442-457

De Milio Carrín, C. (2024): Las grandes hadas. La religión mestiza de los campesinos europeos. KRK. Oviedo

Moya-Maleno, P.R. (2020): Paleoetnología de la Hispania Céltica, Etnoarqueología, etnohistoria y folklore. BAR International Series Nº 2996. BAR Publishing. Oxford.

Nieto Ibañez, J.M. (2005) : "La mujer en el deporte griego: mitos y ritos femeninos" in: Idem (ed.): Estudios sobre la mujer en la cultura griega y latina. XVIII Jornadas de Filología Clásica de Castilla y León. Universidad de León. Leâo. pp. 63-82

Schattner,  & Santos, M.J Correia (2010): Porcom, Oilam, Taurom. Cabeço das Fráguas: o santuário no seu contexto. Actas da Jornada realizada no Museu da Guarda a 23 de Abril de 2010. Iberografias. Revista de Estudos Ibéricos Nº 6. PDF

Tenreiro-Bermúdez, M. (2006): Sereas, Homes Mariños e os Mariño: Verbo dalgunhas pegadas do ciclo melusínico no folclore. Trabalho de pesquisa inedito apressentado para modulo de etnografia do titulo de especialização em Estudos Céltico da UIMP e a RAH PDF

Tenreiro-Bermúdez, M. (2007):  "A lenda melusínica no folclore galego: Apuntamentos sobre o culto e o popular" in: Romero Portilla, P. & García Hurtado, M-R (eds.): De Culturas, lenguas y tradiciones. II Simposio de Estudio Humanísitcos. UDC. Corunha  pp. 263-279 PDF

Tenreiro-Bermúdez, M. (2014): "Espadas, Águas e Mouros - duas Lendas" Archaeoethnologica 24-02-2014 aqui

Tenreiro-Bermúdez, M. (2015): "Mitologia Galega através de duas lendas germadinas" palestra proferida o 12-12-2015 (apressentação aqui)

VV.AA (1994): Xermade, o meu pobo. Xunta de Galicia. Santiago

Audios 

Cátedra de Estudios Leoneses "La mujer como protagonista: Sobre matadoras" (coleção de recolhas em audio de diversos romançes sob a Gallarda e a Serrana) aqui

NOTAS

1) Um paralelo de este motivo asociado a carreira para ganhar a noiva, com destacaveis coincidencias com as história de Atalante, tem sido estudado entre os povos eslavos do sul por Holzer (2020)
2) A remoção do cinto (zoster) como parte da panoplia militar pode ser entendido como uma negação da condição militar ,similar a capturar as armas pelo inimigo, mas tampouco se pode desbotar o facto de que o zoster formava, o modo de cingidor, parte do vestido feminino igualmente, e que remove-lo supõe deixar livre o frouxo o chiton, pelo que também pode entender-se este gesto com um forte sentido erótico. A conexão entre o sometimento sexual a vontade do varão e a perda da "força" que o cinto repressenta, recorda ceteris paribus ao o que lhe sucedera a certa mulher-guerreira dum relato cavaleiresco árabe (História do Rei Omar-Al Neman e os seus filhos) contido em As Mil e Uma Noites que perdera a sua força e habilidades guerreiras, devindo apenas uma feble mulher como outra, tras perder a sua virgnidade
3) Essa vestimenta masculina de Uathach podia comparar-se igualmente com a verstimenta hipoteticametne "masculina" da mulher com calças curtas da bainha de espada de Gryniv, citada ao inicio.
4) É inevitavel por em relação esta triade formada por Scáthach-Uathach-Aife no relato épico com um trassunto do que no panteão representam as triple das deusas celticas da soberania e a guerra, como a tripla Macha ou a tripla Morrigan
5) Não descontamos a priori a possibilidade de topar paralelos de este padrão mitico igualmente no ambito dos indo-europeus orientais, nâo é esta a finalidade de este texto breve. Embora consideramos pode ser de muito interesse. essa futura extanssão da exploração sobre as mulheres guerreiras da epica ou relatos folcloricos nos ambitos indo-iraniano, armenio, ou eslavo. 
6) Prosperidade material muito buscada pelo campones pobre, mas que da que através da comparativa das variantes se pode derivar de relatos de tipo melusinico que em ultimo termo são um avatar  reciclado da velha mitologia da mulher sobrenatural, personaficação da Soberania sob o territorio, ao qual oferesce a prosperidade através da união frutifera com o monarca (Tenreiro, 2006, De Milio, 2024)
7) Em parelelo a forma hidrida de humana e animal da Galharda, alguns romances de acordo com esta origem biologica atribuem a Serrana ter a metade inferior do corpo de equina: “De medio cuerpo p~arriba / tiene figura de fiera; / de medio cuerpo p´abajo / tiene figura de yegua” (Dominguez Moreno, 1985)
8) "Fulvius Stellus odiava às mulheres e costumava unir-se a uma égua, e no devido tempo a égua deu à luz uma linda menina e eles a chamaram de Epona. Ela é a deusa que se preocupa com a proteção dos cavalos. Assim o diz Agesilaüs no terceiro livro de sua História Italiana" (Pseudo-Plut. Paral. Minora 29)
9) Existe uma polaridade estrutural, possivelmente originaria, entre as verssões que mostram a conduta de rejeitamento do matrimonio e o submetimento ao varão como resultado de um celibato iniciatico prolongado (Atalanta, Brunilda) e aquelas que, -as vezes em esse mesmo contexto iniciatico (Scáthach e o resto da triade escocesa). ou fora de ele (Galharda, Serrana, Orca Velha) mostram uma conducta sexual não apenas à margem do matrimonial mas tinguida de um certo selvaginsmo, conducta que nunca contexto de moral cristiana apedas pode entender-se como puramente maligna, perigossa, tanto fisica como eticamente. 
     

Sem comentários:

Enviar um comentário