quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Da Ortodoxia que nunca foi


A ortodoxia nunca existiu na vida religiosa real do povo, era apenas uma coisa escrita nos livros mas nunca praticada que de vez em quando algum eclesiástico iluminado, como há uns meses o pároco Anti-Mortalhas de Santa Marta de Ribarteme, lhe dava por exumar dos manuscritos, se lhe cruzava-se o cableado e principiava a ver "paganismo" "heresia" ou mais tardiamente "judaísmos" por todo-los lados. até em coisas que quando nasceram seriam mais ortodoxas que a ortodoxia própria, se esta tivera alguma vez existido além do registo livresco. 



E tentava assim impor a macheta essa religião dos livros que ele pensava era a "verdadeira" ainda que de facto para o conjunto dos crentes em verdade nunca existiu.

Já se vê com quanto sucesso, e logo de isso se volvia a guardar na estanteria o manual de ortodoxia e morra o conto até que ao cabo dum tempo outro crego lhe dava por ler o manual se nos iluminava lhe dava de novo por intentar outra vez alindar a seu rebanho "pelo livro". 

São esses casos isolados, episódicos, esporádicos que apareciam e desapareciam como o Guadiana pelos seus olhos, e se esqueciam tão rápido como aconteceram, o que cria a ilusão retrospetiva de que existia algo que se manteve ao longo do tempo, continuamente e de geração trás geração de eclesiásticos teimosos turrando e anatematizando, dia sim dia também, as tradições supersticiosas do povo. 

Pena da Água, Esquadro, Silheda (Ponte-vedra)

Mas sejamos realistas não há mais que ver os ritos e lendas de tantos santuários cristãos para ver isso "nunca foi assim" e que essa religiosidade corrente e quotidiana que por vezes se volvia ao olhos de alguém uma heterodoxa anomalia de fé era a religião "normal" e de toda a vida tanto para o paisano como para o próprio cura que lhe-la oficiava religiosamente e sem conflito nenhum. 

Em esse sentido essa perceção retrospetiva não é apenas mais que um espelhismo criado artificialmente e que nos opaca muito da correta interpretação do Imaginário e a cosmovisão religiosa do povo. Essa entidade fantasmal criada como essência imutável a que se supõe em conflito quase eterno contra uma suposta "heterodoxia popular" nunca foi assim, nem nunca teve quase mais que um efeito mais bem limitado na religiosidade real e nas crenças do povo. 

Eu gosto de dizer que a "Ortodoxia" nunca existiu o único que existiram foram de facto apenas, e por vezes, "momentos ortodoxos", que vinham e iam, nesses momentos se tentava "ativar" uma forma de ver a religião que apenas existia nos livros, livros que lia ou ao menos podia ler (poder ler algo não sempre implica que se vaia ler ou que se vaia fazer caso ou porem prática o que se lê, máximo quando por regula geral está muito alongado da prática) um grupo muito limitado dentro do conjunto dos crentes, uma elite intelectual muito restrita dentro dum grupo já restrito como era o dos eclesiásticos profissionais.

Muitos tomam a pé da letra a exortação do Martinho de Braga no seu De Correctione contra os ritos pagãos dos camponeses supondo-a uma proba da existência em paralelo de um paganismo vivo em paralelo ao cristianismo (algo que aceita acriticamente a visão bastante maniqueia que tinha o próprio Martinho sobre a religião do povo); sem reparar em que ao final do texto o próprio Martinho não exorta precisamente a pagãos senão "a vós que aceitas-te o Signo (da Cruz)" isto é ao os cristãos que segundo ele fazem coisas que não vão "pelo seu manual de ortodoxia" e por tanto devem ser cristianismo "falso" e por tanto em realidade, seguindo a linha argumental, "paganismo". 

Passados uns quantos séculos boa parte dos ritos descritos por Martinho seguem-se praticando por cristãos e vinculados a santos cristãos e santuários de peregrinação, ermidas, e igrejas sem problemas, é dizer são perfeitamente cristãos na forma em que a gente entende o cristianismo e não há motivo nenhum para pensar que isto deixara de ser o mesmo que acontecia já na época de Martinho. 



A fim de contas este não deixava de ser um estrangeiro, um eclesiástico panónio formado seguramente na rica e intrincada tradição teológica do Império de Oriente e que de seguro sofreria um autêntico choque cultural muito forte ao ver as formas do cristianismo ocidental (em este caso o da Gallaecia). 

fonte santa de Santo André de Teijido

Um choque cultural que conhecem muito vem os antropólogos atuais quando por primeira vez se iniciam no trabalho de campo numa cultura que lhes é alheia; se vem os antropólogos estão vacinados por seus estudos contra os andaços de etnocentrismo cultural mentes que os estudos teológicos bizantinos de Martinho o predispunham num sentido totalmente contrario cara esse contexto cultural extranho ao que se enfrentava ... 

A risco de ser pesados e enfáticos demais insistamos de novo: "a ortodoxia não existe" além do momento concreto em que de vez em quando se produz um novo "surto ortodoxo", como fenómeno que aflora na mente dalgum eclesiástico ou grupo de eclesiástico como agora sucede --outra vez mais de tantas- com o pároco de Santa Marta de Ribartemete.

Convencido de estar imerso numa cruzada "re-cristianizadora" (segundo afirma em declarações recentes aos jornais) contra o maléfico paganismo e a superstição do povo inculto e por defeito errado (como diz Bermejo "o povo nunca teve ração, porque não a poderia ter"), de igual jeito pensava Martinho de Dumio , e sem dúvida tão equivocado e condenado ao fracasso está um como ou outro estivo o outro.

Algum pode-me argumentar que essa "inexistência" da que eu falo pode ser matizada. e sim, se podem oferecer matizes, claro, se vem penso não invalidam em nada o argumento. Um de eles seria que isto foi assim pelo menos até que apareceu o Protestantismo que de certo algo mais conseguiu neste âmbito de combater a supostamente impura religião não-ordodoxa sive popular (sobre tudo no de liquidar esse reserborio de "sincretismo" que era já desde a Tardo-antiguidade o Santoral) ... 

Tampouco é que a Contrarreforma fora neutra, porque há que recordar que esta criou e generalizou a obriga de que existiram seminários diocesanos para a formação de todos os cregos dentro de cada jurisdição episcopal, o quais aumentaram o número de clérigos formados na tradição livresca e por tanto mais propensos a sofrer ataques de "cio ortodoxo". 


Como digo o Protestantismo sobre tudo algo fiz mais em este sentido, mas ainda seguem ai os ritos do Mari Llew galeses, os may-pole e os mumers dancer insulares, e todos os lumes solsticiais ainda bem vivos nos protestantissimos países do Norte Europeu, e não digamos já os irlandeses subindo anualmente na véspera do antigo Lughnasad a um Croach Patrick que está rodeado no vale de uma paisagem surcada de túmulos megalíticos e similares (uma paisagem sagrada de livro). 

Ou todos esses costumes e lendas que na Alemanha no século XIX ainda puderam recolher etnógrafos como os irmãos Grimm entre outros, ou Sebillot, Luzel, Villemarque na França; más que daquela já estavam entrando em fase terminal a medida que avançava a toda velocidade a Revolução Industrial e a sociedade tradicional desaparecia abruptamente.

Aqui onde a industrialização da agricultura ainda principiou a assomar -e timidamente- a meados dos anos 50, e os nossos avós ainda viveram boa parte da sua vida numa sociedade tradicional pura e dura, aqui neste recuncho até ontem e, em alguns caso, mesmo até hoje mesmo seguem vidas coisas que no resto do Ocidente da Europa estão mortas desde faz 200 anos. 



Em riqueza etnográfica a Península Ibérica e em especial o Noroeste e a sua prolongação pelo Cantábrico (Galiza, Norte de Portugal, Astúrias, parte do Ocidente de Leão, o Berço, e Samora, Cantábria, Euskadi) somos para a Europa Ocidental o que os Balcãs são na Europa Oriental: uma autêntica "Potência."

Volvendo ao caso mediático das Mortalhas de Santa Marta pessoalmente penso que esta cruzada do novo pároco é uma tentativa fortemente des-ubicada não só no seu contexto geográfico, cultural, que é o galego, senão diria que também espiritual, e ainda no contexto geral de uma contemporaneidade na que o mundo se apresenta cada vez mais "desencantado" e escindido não apenas já da transcendência, senão até dos mais mínimos átomos de religiosidade. 

Santo Cristo da agónía em Xende, 1977, fotografia Cristina Garcia Rodero

Eu pergunto-me; pode neste contexto de superavit de ateísmo, agnosticismo ou ainda de total indiferencia, permitir-se a Igreja oficial lutar num combate suicida contra o que creem os que ainda creem?, que sentido tem "des-ritualizar" (matar) o rito -dos poucos- que ainda vive entre a gente, porque "des-mitologiçar" os mitos que ainda pervivem?, e que quedara depois da defunção do rito e o mito? 

um exemplo "estirpação da idolatria" na actualidade

Recordava-me estes dias uma boa amiga -historiadora das religiões e mitologa de pró- uma frase de Dumezil que penso define perfeitamente a situação e que vinha a dizer mais ou menos algo assim: "O povo que deixa de crer nos seus mitos esta condenado indefetivelmente a perder a sua identidade e finalmente desaparecer", penso que o mesmo , e ainda de forma mais clara, se aplica também para o "Povo de Deus"



Foto principal: Castinheiro centenario de Santa Cristina de Ribas de Sil, Ourense.


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