sexta-feira, 7 de abril de 2023

Asnos, Equitação e domesticação no Oriente



Um artigo publicado no 2018 na revista Plos One apresentou a evidencia mais antiga de equitação no Oriente Antigo. O animal foi topado nas escavações do jazigo de Tell eṣ-Ṣâfi/Gath (Israel), numa das estruturas domesticas dum bairro datado nas fases do Bronze Inicial III B (circa 2800-2600 A.C). O equídeo é um asno que apresente um desgaste do segundo pré-molar inferior. Este desgaste como os autores do artigo sinalão sugere claramente o efeito da abrasão provocada por um bocado de material duro (metal, osso, madeira) para ajudar a governar o animal, pelo que seria a evidência mais antiga até o momento do uso de freio em um equídeo doméstico no Oriente Próximo.


A introdução do burro doméstico no zona remonta-se 4º e início do 3º milênio A.C, sendo usado como animal de carga em esse momento. A introdução do asno doméstico mudou supôs um câmbio revolucionário no transporte de pessoas e mercadorias nas primeiras sociedades complexas que por aquele então estavam a emergir no Levante e Mesopotâmia. Este animal proporcionou uma forma mais rápida e abaratou os custos do transporte de mercadorias a longas e curtas distâncias, o que incentivou uma intensificação nas redes de troca inter-regional e no movimento de pessoas que teve um papel crucial na evolução da complexidade social e do próprio urbanismo. 


Estas “bestas de carga” permitiram a forte conectividade que sustentou as redes intercâmbio de longa distância que conectavam o antigo Oriente Próximo à Ásia Central e Meridional ao Egito, junto com Anatólia e os portos costeiros do Mediterrâneo. Essa conectividade ligou estas zonas dando lugar a um difusão de mercadorias, ideias e rasgos culturais. 


Na Mesopotâmia, há testemunhos textuais e iconográficos de burros e/ou onagros e cruzes como a mula, usados como animais de tração tanto para o transporte como para o cultivo dos campos, são casos como o do célebre “Estandarte de Ur” ou “Estela do Abutre” onde aparecem asininos aparecem tirando de carros de quatro rodas em cenas de batalha. Os burros são identificáveis também em representações iconográficas no já Egito desde o Império Antigo. 


Haveria igualmente que citar o caso de uma serie de estatuetas de equídeos conhecidas na segunda metade do 4 milénio no Levante e Mesopotâmia, que mostram burros carregados com jarros e outros recipientes ou com selas e arreios. 


Estas cenas de asnos assados como animais de carga tornam-se pouco frequente após o inicio do Idade do Bronze, coincidindo parcialmente com a data do equídeo de Tell eṣ-Ṣâfi/Gath pelo que os autores sugerem que esta mudança na representação do burro pode estar a refletir um novo papel e significado do animal, no que os uso quotidianos, de transporte e comerciais não interessam já ser representados na arte embora com seguridade seguir a existir. 


As evidências isotópicas do jazigo de Tell es-Safi permitem rastrear um intenso tráfego de estes animais entre os territórios Egito e o Levante durante o início da Idade do Bronze. Paradoxalmente isto pode não ser um indício de uma perda de importância do animal senão com muita probabilidade uma promoção a uma nova esfera simbólica como se transluzi em épocas posteriores pela importância do asno tanto doméstico como selvagem em época posterior como metáfora e símbolo do poder real. Em contraste com a informação abundante sobre o burro como animal de tração e transporte sobre o uso do animal para monta apenas se sabia quase nada, para fases tão antigas no Oriente Próximo. 

cenas de equitação na Idade do Bronze: acima selo acadiano da cidade Kish (2400–2200 A.C), abaixo selo de Abbakalla, III Dinastia de Ur, circa 2030 A.C.

Cavalgar é uma atividade que implica um desenrolo técnico complexo, já que se bem e possível montar ao simples passo ao animal suster-se e controla-lo para à carreia é praticamente impossível sem o uso de algum tipo de freio, pelo que este se torna essencial para o desenrolo da equitação. 


Apesar das sugestões de alguns autores sobre a presença no Paleolítico Superior de freios perecedoiros de couro baseadas em interpretações ambíguas sobre algumas imagens da arte rupestre, as evidências aceitadas hoje sinalão ao Cazaquistão entorno ao 3500 A.C. A estas ocos na informação arqueológica sobre os inícios da equitação se unem frequentemente ambiguidades e confusões nos termos

"A literatura está repleta de terminologia ambígua que não consegue distinguir entre cabeçadas e freios. Um cabresto é usado para conduzir ou amarrar, enquanto um freio permite um controle muito mais preciso do animal, principalmente para montar ou dirigir. Ambos fazem parte do arnês usado para controlar um animal (geralmente um equídeo), com o qual as rédeas podem ser presas. Um cabresto pode ser uma corda ou tira com um laço colocado na parte de trás da cabeça, nas bochechas e ao redor do nariz do animal. Enquanto o cabresto e o freio usam tiras nas bochechas que circundam a boca, o freio também inclui um freio que se estende pela boca e se inclina contra os segundos pré-molares inferiores. A importância da broca é que ela impacta a forma como os animais domésticos de transporte podem ser usados. Um pouco ajuda no treinamento, condicionamento, redirecionamento e controle dos animais, principalmente quando não é usado em uma situação de grupo. Isso é especialmente relevante em situações em que o animal está sendo montado e o controle absoluto do animal é essencial

... não é necessário se o animal estiver simplesmente sendo conduzido. Por exemplo, em vez de serem embridados, os animais das caravanas costumam ser amarrados um atrás do outro ... Eles seguirão um ao outro sem serem amarrados, pois são animais socialmente comportamentais. Esse cenário faz sentido quando se tem em mente a iconografia dos primeiros equídeos do Oriente Próximo. As imagens retratadas são de burros controlados por argolas ou bandas nasais enquanto puxam carroças ou transportam pessoas e mercadorias. Mas, como foi observado com equídeos modernos, anéis e bandas nasais são um meio muito pobre para controlar equídeos, em particular burros. ... 

Da mesma forma, não se pode montar um burro ou fazer que um burro puxe uma carroça puxando dum arete no nariz, pois qualquer movimento de um lado para o outro ou para frente e para trás puxará o anel para fora do tecido mole do nariz. As argolas nasais só funcionam efetivamente como controle quando usadas na frente do animal. Como é evidente para qualquer que tenha tentado controlar um animal grande com um arete no nariz, eles podem ser usados apenas para que um animal siga um atrás do outro ou para amarrar um animal a um local fixo para que ele não possa vagar. Eles não podem ser usados efetivamente como um freio substituto para um cavaleiro"

Outros autores (Milevski) sugeriram em base a analise iconográfica das estatuetas que houve uma evolução na forma de usso dos asnos durante o Bronze Antigo no Levante Sírio-Palestino. No entanto as estatuetas mais antiga como vimos apenas representariam burros carregados de mercadorias, posteriormente já no Bronze introduzem a imagem do burro sendo montado, o qual seria coerente de novo como o achádego de Tell eṣ-Ṣâfi, pelo que este viria a confirmar esta hipótese da qual já se sugeriram anteriormente algumas evidências menos concludentes:  

"A aparência ou identificação de freios e freios no registro arqueológico tem sido muitas vezes ligada a discussões sobre se os primeiros equídeos (cavalos, burros, onagros, etc.) foram domesticados. Arqueólogos e zoólogos que trabalham com material da Europa e do Oriente Próximo estudaram extensivamente os vestígios iconográficos, textuais e artefactuais díspares para determinar quando os equídeos foram montados pela primeira vez, por exemplo. Pedaços de osso e chifre trabalhados têm sido sugeridos como potenciais freios e bochechas na Europa e nas estepes da Eurásia desde o final do terceiro, mas mais comumente no início do segundo milênio AC. No entanto, não há concordância na literatura de que esses objetos sejam realmente peças faciais, uma vez que nunca foram encontrados in situ em um crânio de equídeo e raramente encontrados em associação com enterros de cavalos .

Em sepulturas datadas do período acadiano e no final do EB (final do terceiro milénio . A.C) em Tell Brak, no norte da Mesopotâmia (atual Síria), foi sugerido que o desgaste diferencial visível na face anterior do LPM2 de dentes de burro era uma função do desgaste da broca. Além disso, há uma placa de cerâmica recuperada de depósitos acadianos em Kish que retratam um burro ou onagro sendo montado.

As primeiras evidências inequívocas de freios e freios em equídeos no Oriente Próximo aparecem apenas na Idade do Bronze Médio, e os cavalos se tornaram comuns apenas em textos cuneiformes e no registro arqueológico após a virada do segundo milênio aC . Por exemplo, no sítio da Idade do Bronze Médio de Tel Haror, uma broca de metal foi encontrada associada a um enterro de burro."

Por contra durante o Bronze Meio há uma grande abundância tanto de fontes tanto textuais como iconográficas que mostram a monta do asno como um uso consolidado tanto no Oriente Próximo como no Egito. E mais durante este período o burro aparece vinculado as elites da essas sociedades, os reis de estados como Mari se representam cavalgando asnos, e a própria Bíblia mostra a imagem do asno como cavalgadura dos patriarcas bíblicos, juízes de Israel ou do próprio rei Saul, uso prestigioso e vinculado o poder do que podemos ver um último avatar, reinterpretado como ato de humildade, na cena Pascoal da entrada de Jesus "Rei de Reis" na cidade de Jerusalém sob o lombo de um asno.

"Entrada triunfante de Jesus em Jerusalem" de Giotto,1304/1306

A descoberta do exemplar de Tell eṣ-Ṣâfi apresentado no artigo de 2018 por tanto apresenta a primeira evidencia clara do uso de um freio vinculado a atividade da equitação durante o 3 Milénio A.C. no Oriente Próximo, muito antes da introdução do próprio cavalo em esta zona geográfica, já seja isto resultado de uma evolução independente ou da transmissão da tecnologia vinculada a equitação desde a estepe contemporânea, questão que fica aberta a pesquisa e ainda por definir num futuro.


Artigo:

Haskel J. Greenfield, H., Shai, I., Greenfield, T. L.  Arnold, E.R., Brown, A., Eliyahu, A. Maeir. A.M. (2018):  "Earliest evidence for equid bit wear in the ancient Near East: The "ass" from Early Bronze Age Tell eṣ-Ṣâfi/Gath, Israel" Plos One Nº 13/8   DOI: 10.1371/journal.pone.0196335

   

Bibliografia complementar

Darby, E.D & Hulster, I.J (2022): Iron Age Terracotta Figurines from the Southern Levant. Brill, Leiden.
  
Drews, R (2004): Early Riders: The Beginnings of Mounted Warfare in Asia and Europe. Routledge, Londres.
   
Milevski I. (2009): "Local exchange in the southern Levant during the Early Bronze Age: a political economyviewpoint" Antiguo Oriente Nº 7 pp. 125–159 PDF
  
Milevski, I. (2011): Early Bronze Age Goods Exchange in the Southern Levant: A Marxist Perspective. Routledge. Londres.
   
Outram A, Stear NA, Bendrey R, Olsen SL, Kasparov A, Zaibert V, et al.(2009): "The earliest horse harnessing and milking" Science. Nº 323(5919) pp. 1332-5. DOI: 10.1126/science.1168594


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