domingo, 23 de outubro de 2022

Do Caçador (Endo)Metropolitano


Um amigo disse-me uma vez que as pessoas que se dedicavam à pesca e viviam em zonas costeiras "eram por mentalidade os últimos caçadores-coletores"; anedotas como essa de que chegaram do Grande Sol, e aproveitaram para renovar a cozinha com a ingexão monetária de uma boa campanha.


Antes de que uma turma ofendida se me bote derriba e me acuse com o índice de desconhecimento da situação, e de denigrarem aos pescadores e gentes do mar (longe de mim tal coisa), aclarar duas coisas: 1) nada há de mau nem negativo em ser um caçador-recoletor e pensar como tal (a Humanidade leva mais tempo sendo isso, caçadora, pescadora e recoletora, e pensando como tal, do que leva portando trajem ou mesmo sacho na mão), e 2) a opinião não era minha senão de esse amigo, discutível como qualquer opinião e apoiada apenas na sua interpretação e experiencia subjetiva como empregado de gestão em uma confraria de pescadores.


Outro dia, comentando isso com outro amigo surpreso, ele me disse que seu sogro, que havia sido pescador, ficou muito surpreso com esse comportamento de seus parceiros. Ele economizava dinheiro, e me esclareceu "mas ele não era de lá, ele era do interior onde se dedicavam à agricultura".


O agricultor, goste ou não, é obrigado a planejar sua atividade em uma série contínua e gerenciar um excedente, por mais limitado que seja (para consumir e para reservar para plantar novamente), o caçador vive em um mundo mais descontínuo (hoje é possível caçar uma boa peça, talvez nada manhã) e não tem sobrante ou capacidade para armazená-lo (o que não se come hoje e agora vai apodrecer cedo), seu consumo está, portanto, condicionado por essa descontinuidade e incerteza. E isso cria seu próprio sistema de racionalidade adaptada a circunstância.


Se isso for transplantado para a uma situação atual muito geral na que as pessoas tem apenas empregos precários (se tiverem) e, portanto, rendas que estão sujeitas a incertezas sem capacidade de armazenar um excedente, no máximo fazer fronte às despesas cotidianas sem dever dinheiro ao banco (o que se chama “chegar a fim do mês” (coisa que como pai de uma família que eu conheço muito bem). Isso pode explicar essa lógica do carpe diem não-maximiçador, lógica de "consumir rapidamente”, que a fim de contas é apenas um consumir preferentemente agora que você pode pelo menos consumir algo (amanhã ao pior já não).


Se o ascetismo de poupança é sempre uma raridade, ao contrario do que defendem os neo-liberais (atrapados em isto em uma bizarra antinomia que pede consumir domesticamente como um aristotélico mas insta a ir ao Mercado como um smithiano ortodoxo). Sendo isto, como afirma-mos por norma geral, uma esquisita "raridade”, é óbvio que em essas condições ainda mais o será; porque tal ascetismo devera então ser praticamente um ascetismo de "monge mendicante" (se não se tem de que poupar, pelo menos não-gastar nada), ou o que hoje se chama eufemisticamente "políticas de austeridade" .Querer que as pessoas vivam assim, seguindo essa regula monacal secular, nesse contexto é uma fantasia delirante quando não uma utopia.


Por certo, a Utopia de Moro, fora a primeira obra em sugerir uma rígida planificação das horas trabalho e de uma ociosidade, não "ociosa" precisamente senão igualmente "produtiva". Um proto-taylorismo in nuce que tampouco é tão estranho. Devemos ter em conta, algo bem conhecido, que a ascese aforradora andou, quase sempre, da mão com a exaltação da "produção" (mas sempre, curiosamente, mais do lado do produtor e algo menos da do proprietário).



O "trabalho dignifica" diz a sabedoria do povo, mas o trabalho dignificou primeiro como castigo e mortificação do corpo, ao nível de se zorregar as costas com uma disciplina ou copiar tediosos manuscritos por horas destroçando, no entanto, com o esforço a vista. Esse e não o outro era o sentido originário do "ora et labora" monacal.

Depois, sem sair do mesmo âmbito ascético, o trabalho dignificou como uma demonstração externa de virtude e/ou "graça", ideia exprimida até suas ultimas consequências, como já no seu dia vira o Max Weber, pelo Calvinismo na ideia da predestinação para a riqueza ou "evangelho da prosperidade".

E finalmente, já como um fim em si próprio, apenas um significante valeirado do significado, uma cascara ou exoesqueleto vazio no momento atual de (Tardo-)Capitalismo; quando você não acredita mais nele como meio de alcançar o ilustrado e salvífico "progresso" (alguns ainda acreditam, mas são poucos e, normalmente, pretensiosos), e fica reduzido a mera subsistência.



Função "subsistêncial" na que o termo “Precariedade” torna cada vez mais sinónimo -e eufemismo- de outra palavra mais feia, que por isso mesmo não se quer pronunciar: “Indignidade”.


Indignidade emergente que fica sem que por isto se dilua na consciência o peso tortuoso do pecado, o estigma social e autoassumido do trabalho: o “des-emprego”. Alguns dirão que isto é "vitimismo", mas não falemos de "vitimismo": o anho pouco se queixou, para o pudera ter berrado, no justo momento de em que foi degolado ... mas, nada havia já que expiar. Nada há de "natural" em tudo isto


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