Anda circulando estes dias em distintas versões meme uma frase da "Psicologia das Massas" de Gustave Le Bon, livro que influi muito no seu tempo sobre o particular (Freud) e que eu pessoalmente tive que ler no seu tempo para uma das assinaturas de psicologia que teve que ler durante a universidade (coisas de estudar uma carreira interdisciplinar e ser disléxico)
Não vou negar que essa obra tenha ainda coisas de interesse e apreciações as vezes corretas, mas como conheço um pouco o contexto histórico e intelectual da época e do autor creio que compre aclarar alguma coisas sobre quem era Le Bon e porque escreveu a "Psicologia das Massas" e, sobre tudo, quais eram "as massas" que tinha na cabeça quando escreveu essa obra:
Le Bon o Reacionário
Junto coa "Psicologia das Massas" Le Bon escreveu "A Revolução Francesa e a Psicologia das Revoluções", em realidade os dois livros criticavam o mesmo, pois Le Bon era um ultraconservador (em essa época lhes chamavam "reacionários") e estava em contra tanto da Revolução Francesa (e as Revoluções Liberais da primeira metade do s. XIX), assim como contra Democracia ou o nascente Socialismo, para ele todas estas coisas (Revolução, Democracia, Socialismo) eram exemplos do que passava se essas massas irracionais não estavam controladas ferreamente por umas elites civis e religiosas e chegavam a ter poder.
O mais paradoxal é que Psicologia das Massas que era uma crítica e denuncia do manipulável das massas inspirou durante os anos 30 aos fascistas italianos, Mussolini era um leitor ávido de Le Bon, assim como nazis alemães, o próprio Hitler mesmo o cita no seu Mein Kämpf, para desenhar técnicas de manipulação de massas.
Le Bon o antifeminista, racista e eugenista
Le Bon também considerava que as raças se diferenciavam pela inteligência e por tanto havia povos -e civilizações superiores a outros ("Psicologia da Evolução dos Povos", "A Civilização da Índia" "A Civilização dos Árabes")
E consideraba que igualmente os varões eram por natureza mais inteligentes ao ter o cérebro mais grande, pelo qual estava em contra do acesso das mulheres a educação e as responsabilidades politicas -entre elas o direito ao voto- ("Da natureza das mulher e a sua incompatibilidade como o exercício do poder") e igualmente era partidário da eugénica, do colonialismo e criticava aos pacifistas como bom militarista que era ("Psicologia do Socialismo", "Sobre as Primeiras Consequências da Guerra" -a I Guerra Mundial- ).
Despistados, Memes e viralidade
Levi-Strauss tem morto já 3 ou 4 vezes no Facebook, cada certo tempo alguém topa na rede a nova do seu passamento sem reparar na da data, ao qual lhe seguem mostras de desconsolo pela morte de este grande antropólogo (morreu com 100 e pico de anos pelo que agora já seria Matusalem se estiva morrendo outra vez).
Não é nada novo, de igual jeito cada certo tempo aparecem frases descontextualizadas de diversos autores (outro caso recorrente e o dum meme com uma frase de Ayn Rand -uma pensadora apenas apta para gente sem nenhuma empatia (ou quase), isto é para psicopatas que cada certo tempo alguém topa e saca do caixão: mesmo picaram na armadilha gente de esquerdas e até acratas digo "acratas" de verdade, não Ancaps loucos) ... mas não nos enganemos se hoje Le Bon vivesse seria um decidido partidário de Marie Le Pen e similares.
Nem Demonizar nem Angelizar, "oui ou non? ... differant"
Não se trata tampouco de demonizar a esse barbudo, que já faz tempo que esta repousando no Campo Santo, isto é algo demasiado frequente hoje na redes sociais, nas que se perde por apaixonadamente o bom juízo e um mirada racional sobre os assuntos nos que se discute... mas sim de entender criticamente o que lemos e sê-nos vem ao ecrã fortuitamente.
Podemos escusar a ignorância, ninguém sabe tudo e pode cometer erros, nem temos de saber de todos, quem eram e a que abdicavam o tempo livre, todos pudemos interpretar coisas sem saber, sentir-nos identificados com uma frase concreta de alguém com o que em realidade nunca nos identificaríamos, é inevitável. Mais certo é que uma vez conhecido o contexto e as implicações de algo (um texto, uma ideia), quando a nossa mirada se torna "informada", obviamente, já não pode ser a mesma
Porque ler ainda?, ... e como Ler?
Não digo que não se leia a Le Bon (além do meme que emerge de vez em quando do esquecimento), mesmo ler a Le Bon conhecendo seu contexto e os porquês do que diz mesmo pode ter utilidade, pode ser um bom exercício critico de revisão dos prejuízos ou mentalidade de uma época, tal vez de esse contraste pudéramos ainda aprender algo de nós mesmos, de alguns discursos ou ideias que as vezes assumimos inconscientemente sem consciência dos ecos curiosamente similares ao autor que lemos, o espelho estranho do passado pode-nos ajudar no "estranhamento" do nosso pressente, distanciando-nos do que se entende como "obvio", nenhum "sentido comum" é comum além das coordenadas do seu contexto na época e no espaço geográfico que ocupa.
Se pode se ler a Le Bon, sim, mais não desde a ingenuidade senão desde uma visão critica e informada. Desde este ponto de vista ler a Le Bon não tem porque fazer de ti um Leboniano. como tampouco a leitura de algum discurso das Obras Completas de B. Mussolini te faz automaticamente fascista e italiano, ou não se pode ler a Carl Schmidt sem ser militante do NSPD?, mesmo se pode aprender algo sobre alguns sinais de alarma que de outro jeito nos passariam desapercebidos.
Basicamente assim é como pensa um historiador... senão quedaríamos sem fontes
Algo de Bibliografia:
Uma pequena escolma da obra de Le Bon aqui
Sobre a infuencia de Le Bon e o lebonianismo no contexto sudamericano e caribenho:
Flórez Bolívar, F.J (2009): "Rastros, rostros y voces del racismo institucional en Cartagena: Un acercamiento a partir del debate de la “degeneración de las razas”, 1910-1930" Jangwa Pana Nº 6-7 aqui
Gallo, O. (2021): "Inmigración y eugenesia en el Caribe" Esboços, Florianópolis, Nº 28, 47 aqui